Tributação do estoque de fundo fechado: afronta à irretroatividade

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Opinião

A Lei n° 14.754/2023 (conversão da Medida Provisória nº 1.184/2023) introduziu diversas alterações na legislação tributária, como as novas regras para tributação de investimentos no exterior e de fundos de investimentos no país.

Dentre as alterações, instituiu a sistemática de tributação periódica (conhecida como “come-quotas) para diversos fundos de investimentos fechados, cuja tributação, até então, ocorria apenas em eventos de liquidez. Em resumo, os fundos fechados são aqueles em que os cotistas somente podem solicitar o resgate das cotas quando houver o término do prazo de duração do fundo. Isso os diferencia dos fundos abertos, nos quais o resgate das quotas pode ser feito a qualquer momento.

Além disso, a nova legislação estabeleceu a tributação do estoque de resultados acumulados (estoque) pelos fundos fechados.

Assim, a norma inovou em dois pontos muito importantes: a instituição da tributação periódica do come-cotas para fundos fechados; e a tributação de todo o estoque de rendimentos do fundo (e não apenas daqueles rendimentos auferidos após a mudança legislativa).

São mudanças relevantes e que desafiam tanto a natureza dos fundos fechados, quanto a sagrada irretroatividade da norma tributária.

Tributação até 2023

Até 2023, em regra, a tributação dos fundos fechados ocorria apenas em eventos de liquidez, ou seja, na disponibilização efetiva da renda aos cotistas, sob alíquotas regressivas no tempo de 22,5% a 15%, o que representava atrativo benefício fiscal.

Segundo o governo, a alteração legislativa pretendeu tributar os fundos fechados de acordo com as mesmas regras e alíquotas dos fundos abertos para assegurar isonomia, bem como responder a um pleito da sociedade de tributar de forma mais equânime estruturas utilizadas por contribuintes detentores de patrimônios relevantes.

Nesse sentido, o artigo 27 da Lei 14.754 dispõe que “os rendimentos apurados até 31 de dezembro de 2023 nas aplicações nos fundos de investimento que não estavam sujeitos até o ano de 2023 à tributação periódica nos meses de maio e novembro de cada ano e que estarão sujeitos à tributação periódica a partir do ano de 2024 […] serão apropriados pro rata tempore até 31 de dezembro de 2023 e ficarão sujeitos à incidência do IRRF à alíquota de 15% (quinze por cento)”.

Em outras palavras, os rendimentos auferidos pelo fundo fechado em momento anterior à promulgação da Lei 14.754 passaram a se sujeitar à tributação com efeitos retroativos. A alteração é resumida na tabela abaixo:

O artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN) determina que a tributação sobre a renda tem como fato gerador a aquisição de disponibilidade jurídica ou econômica. Considerando a definição e a estrutura dos fundos fechados como sendo aqueles em que os cotistas somente podem solicitar o resgate das cotas quando houver o término do prazo de duração do fundo, é defensável que, em tal estrutura, o cotista (em especial pessoa física — regime caixa) não possui disponibilidade econômica ou jurídica que autorize a tributação destes rendimentos pela sistemática do come-cotas. 

Veículos de investimento distintos

Complementarmente, destaca-se que fundos abertos e fechados são veículos de investimento distintos. Diferentemente da discricionariedade e disponibilidade jurídica da renda presente nos fundos abertos, os fundos fechados não permitem o resgate de cotas a qualquer tempo e, assim, não conferem disponibilidade jurídica ou econômica sobre os rendimentos acumulados (salvo no caso de alienação ou amortização, eventos já tributáveis anteriormente).

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A cota não confere ao cotista disponibilidade do patrimônio detido pelo fundo. Tal disponibilidade só passa a existir de direito mediante a ocorrência de duas situações: o pagamento de rendimentos (resgate e amortização) ou a liquidação do fundo. Por isso, é equivocado pressupor a disponibilidade senão nos eventos de liquidez previstos no ordenamento jurídico.

Ainda, a tributação retroativa dos rendimentos acumulados por fundos fechados desafia a segurança jurídica. Tal medida muda as regras durante o jogo, dado que os investimentos foram realizados de acordo com uma legislação que permitia o diferimento da tributação. Afinal, a decisão original de investimento do cotista levou em conta as vantagens da tributação diferida versus a limitação de liquidez dos fundos fechados. Assim, o mínimo exigível seria um período de transição em que se resguardasse o direito dos contribuintes de manutenção do tratamento tributário aplicável aos rendimentos auferidos no período anterior à nova legislação.

Nesse sentido, a nova legislação também é inconstitucional, pois viola o princípio da irretroatividade tributária previsto no artigo 150, II, ‘a’ da Constituição, o qual veda a cobrança de tributos sobre fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei. Isso porque, os rendimentos acumulados até 31 de dezembro de 2023 foram auferidos em momento anterior à promulgação da Lei n° 14.754/2023, época em que a norma vigente estabelecia como fato gerador o resgate, liquidação ou amortização das quotas, e não a mera valorização do ativo.

Irretroatividade da lei tributária

A Constituição não admite exceção à irretroatividade da lei tributária, de modo que a legislação que institui ou majora determinado tributo deve, necessariamente, ser aplicada para fatos geradores ocorridos a partir de então.

Em situações análogas, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu nessa mesma linha. Por exemplo, em 2013, a Suprema Corte julgou a ação direta de inconstitucionalidade ADI 2588 para analisar a cobrança de imposto sobre lucros auferidos no exterior. Dentre outras questões, analisou-se a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 74 da Medida Provisória (MP) 2.158-35/2001 , o qual visava tributar rendimentos apurados até 31 de dezembro de 2001 por coligadas e controladas no exterior, abrangendo rendimentos obtidos em momentos anteriores à promulgação da MP. Naquele caso, o STF entendeu que o mencionado dispositivo seria inconstitucional por configurar tributação retroativa:

“Quanto a incompatibilidade do § único do art. 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 com os princípios da irretroatividade e da anterioridade, insculpidos no art. 150, III, ‘a’ e ‘b’, da Constituição Federal, tem razão a autora. (…) não pode a legislação posterior atingi-los sem ofensa ao princípio da anterioridade, que é expresso ao vedar a exigência de tributos ’em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado’ (art. 150, III, ‘a’, da CF/88).” (STF; ADI 2588; Relator(a): Ellen Gracie; Tribunal Pleno; Data da Decisão: 10/04/2013).

Com relação à Lei n° 14.754/2023, o Poder Judiciário já vem proferindo decisões que reconhecem a inconstitucionalidade de seu artigo 27. No Agravo de Instrumento n° 5014051-66.2024.4.03.0000, interposto perante o Tribunal Regional Federal da 3° Região (TRF-3) e cujo pedido de efeito suspensivo foi julgado em 04/06/2024, entendeu o desembargador Rubens Calixto que a tributação retroativa estabelecida pela Lei n° 14.754/2023 contraria a Constituição:

“Anteriormente à referida alteração legislativa, a incidência do IRRF sobre os rendimentos auferidos pelos FIDC fechados ocorria apenas na distribuição de rendimentos, amortização, resgate ou venda de quotas, às alíquotas regressivas de 22,5% a 15%, de acordo com o prazo do investimento e a categorização da carteira do fundo como de longo ou curto prazo. Ocorre que, ao introduzir essa nova tributação antecipada, a Lei 14.754/23 pretendeu atingir fatos geradores ocorridos anteriormente à sua vigência. (…) Nesse ponto, vislumbro que a nova lei não respeitou o princípio da irretroatividade da lei tributária, previsto no art. 150, III, “a”, da CF/88. (…) Verifica-se, em exame preambular da questão, que a nova lei, que passou a produzir efeitos somente a partir de 1/1/2024, não poderia incidir sobre os rendimentos auferidos até 31/12/23, pois tais fatos geradores ocorreram anteriormente a sua vigência.” (TRF-3, Agravo de Instrumento n° 5014051-66.2024.4.03.0000, Des. Rubens Calixto. Data da Decisão: 04/06/2024).

No mesmo sentido sentenciou o magistrado Paulo Cezar Neves Junior no Mandado de Segurança n° 5016811-21.2024.4.03.6100:

“Os incisos I e II do art. 17 da Lei 14.754/23, por sua vez, estabelecem as seguintes datas para retenção na fonte do IRRF incidente sobre os rendimentos das aplicações dos fundos de investimento. (…) Contudo, a Lei n. 14.754/23 previu outra hipótese de tributação antecipada, pretendendo atingir fatos geradores ocorridos anteriormente à sua vigência. (…) Verifica-se que o art. 27 da Lei 14.754/23 determinou a incidência do IRRF sobre os rendimentos auferidos em data anterior ao início de sua vigência, estabelecendo que a base de cálculo de tal tributação seria o valor da diferença positiva entre o valor patrimonial da cota em 31/12/23 — incluindo eventuais rendimentos apropriados pelos quotistas — e o valor do respectivo custo de aquisição. Nesse ponto, entendo que a nova lei violou o princípio da irretroatividade da lei tributária, previsto no art. 150, III, ‘a’, da CF/88” (Justiça Federal, Mandado de Segurança n° 5016811-21.2024.4.03.6100, Juiz Paulo Cezar Neves Junior. Data da Sentença: 31/10/2024).

No entanto, a discussão ainda não está pacificada. No Mandado de Segurança n° 5037306-23.2023.4.03.6100, o magistrado sentenciou que não há violação à garantia legal de irretroatividade tributária, mas sim mera alteração do aspecto temporal do fato gerador. Veja-se:

“A legislação impugnada pelo impetrante promoveu a alteração do momento do recolhimento tributário devido, diferido antes da Lei 14.754/2023, e periódica (“come quotas”), após a sua vigência. Nesse caso, entendo que a modificação de aspecto temporal do tributo, ou seja, a duração de certo período para apurar a variação patrimonial, não implica em violação ao mencionado princípio da irretroatividade. (…) De acordo com a literalidade da lei, o acréscimo patrimonial decorrente da aquisição da de renda ou proventos de qualquer natureza constitui disponibilidade econômica ou jurídica do fato gerador do imposto de renda. Do conceito legal, extrai-se, portanto, aspecto material que a renda nova para fins de incidência do imposto de renda deve decorrer do capital ou do trabalho, ou da combinação de ambos, em determinado período. Nesse sentido, a incidência tributária em face de ganhos de capital das operações dos fundos fechados cumulados até 2023, possui como base de cálculo e alíquotas as previstas em lei vigente no período, não alteradas, ao que parece, na novel legislação. De forma que a nova lei manteve íntegro o aspecto material do tributo vigente até dezembro de 2024. (…) Desse modo, a análise da alteração do aspecto material da incidência tributária em relação aos fundos fechados de investimentos deve ser considerada dentro de uma leitura da ordem constitucional. Nesse sentido, está a Lei nº. 14.754/2023 corrigindo uma distorção não republicana, para que, assim como os demais fundos, exista o efetivo pagamento do tributo devido (vale dizer: a nova lei pretendeu concretizar, efetivar, a incidência tributária, corrigindo a dicotomia no tratamento dos fundos de investimento em relação aos abertos). Em consequência, não há que se falar em violação à garantia legal de irretroatividade tributária, pois, como visto, não se trata de nova hipótese de incidência, mas sim alteração do aspecto temporal do fato gerador, o qual se deu por lei” (Justiça Federal, Mandado de Segurança n° 5037306-23.2023.4.03.6100, Juiz Paulo Cezar Duran. Data da Sentença: 15/07/2024).

Em síntese, o entendimento do magistrado seguiu o argumento da União de que o estoque dos fundos fechados já estava sujeito à tributação antes da promulgação da lei, o que ocorreria no momento do resgate ou amortização das quotas. Segundo ele, o que a Lei fez foi apenas antecipar esse fato, não havendo a criação de um fato gerador novo que deva observar a irretroatividade tributária.

Dada a existência de decisões favoráveis aos contribuintes, é possível que a tributação sobre fundos fechados nos moldes implementados pela Lei n° 14.754/2023 seja, com maior frequência, levada pelos contribuintes ao crivo do Poder Judiciário. Considerando seu caráter constitucional, é também possível que a discussão acerca da irretroatividade seja submetida ao STF, o qual, caso siga seus precedentes, deverá reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 27 da Lei n° 14.754/2023.



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