Precedentes, processo tributário sobrestado e tutela provisória

Post Tags :


Processo Tributário

A formatação do sistema de precedentes intensificada com a introdução do Código de Processo Civil de 2015 objetiva otimizar a resolução dos conflitos postos para apreciação no Poder Judiciário sob dois pilares: isonomia e eficiência.

No contexto da isonomia, pensamos, a projeção se dá por meio da replicação do conteúdo da norma construída a partir da intepretação de um texto de lei [1] aos demais casos que assumam identidade fática e de questão [2]. Assim, a lei será aplicada aos casos concretos conforme o conteúdo de significação (norma) fixado no julgamento do precedente, limitando cognitivamente a resposta jurisdicional.

Por sua vez, a eficiência se precipita para afastar os efeitos deletérios do tempo de produção da resposta jurisdicional mediante a criação de instrumentos processuais cujo rito impacta não só a substância da resposta a ser dada jurisdicionalmente aos casos individuais, mas também o próprio exercício da prestação da tutela jurisdicional [3].

Nesse cenário, definida a questão submetida ao julgamento sob o rito de precedente, a fim de que a projetada isonomia e eficiência se materializem, o código processual instituiu a necessidade de suspensão de todos os processos que dela tratem. É o que se depreende da leitura do inciso I do artigo 982 [4], do § 5º do artigo 1.035 [5], do § 1º do artigo 1.036 [6] e ao inciso II do artigo 1.037 [7], todos do Código de Processo Civil/2015.

Tais dispositivos somados ao 313 [8], V, “a” e VIII, do mesmo Código, deflagram a regra de suspensão do processo por prejudicial externa, que se releva quando o julgamento de uma causa é dependente do resultado de outro processo. Especificamente no sistema de precedentes justifica-se o sobrestamento a fim de concretizar os pilares adrede referidos (isonomia e eficiência).

Se, por um lado, necessário o remédio do sobrestamento para resolver a expansão interpretativa e a ineficiência na prestação jurisdicional, por outro viés, a providência pode se tornar uma externalidade negativa.

Referimo-nos aos perniciosos efeitos que a indefinição acerca do tempo de suspensão do processo por prejudicial externa de objeto [9] produz no ambiente do processo tributário. E é sobre esse ponto que dedicamos atenção no presente artigo.

Essa imprecisão temporal é um dado do qual não escapa o processo tributário, pois ela se opõe à projetada eficiência, deveras fere-a mortalmente, pois, se o contribuinte não for dotado de causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário (via depósito ou tutela provisória), ante o seu estado de inadimplência, sofrerá, além dos ônus da mora (que não lhe pode ser oposta, diga-se de passagem), os efeitos colaterais que a acompanham, isto é, o bloqueio da certidão de regularidade fiscal, a inscrição do nome no Cadin e o protesto (para se referir apenas aos legitimados, pois, na prática, os fiscos reiteradamente adotam sanções políticas para coagir o pagamento de tributos, dentre as quais um bom exemplo é o óbice à emissão de notas fiscais.

Para a questão do tempo no processo, existe a tutela provisória que, na interseção do processo tributário suspenso e do sistema de precedentes, está a merecer modernização quanto ao reconhecimento da presença dos elementos que justificam o seu deferimento, a plausibilidade do direito (fumus boni iuris) e o risco da demora (periculum in mora).

Modernização para que se compatibilize o sistema de precedentes ao cenário das tutelas provisórias, pois ainda que a avaliação do preenchimento dos requisitos da tutela provisória no processo tributário suspenso caiba ao magistrado onde o processo restou estacionado, os fatores que a justificam exorbitam seu âmbito jurisdicional, porque transubjetivos. Vejamos.

O risco da demora decorre da impossibilidade de os Tribunais, Superiores e de Apelação, terem condições de julgar os casos repetitivos e com repercussão geral dentro de um prazo razoável.

A morosidade, no contexto do sistema de precedentes, é externa, alheia e incontrolável, seja pelo magistrado da causa, seja pelo contribuinte, pois decorre do volume de processos no Judiciário. Tome-se como exemplo o que destacou o ministro Luís Roberto Barroso: seriam necessários doze anos para julgar o estoque de repercussão geral já reconhecidas [10][11].

O que se está a afirmar é: o risco da demora está implícito na própria sujeição do processo tributário suspenso ao rito do sistema de precedentes. Desta forma, o juízo de valor que justifica a ordem de sobrestamento do processo individual revela-o (o risco da demora) na mesma potência. Portanto, na ação tributária individual sobrestada é incontrastável a sua presença.

A probabilidade do direito também exorta uma releitura, pois tangencia [12] o mérito do processo suspenso cuja definição será dada pelo órgão de cúpula depois do julgamento do caso afetado.

Ora, redefinida a competência do órgão apto a deliberar a norma jurídica a ser replicada no caso tributário individual, há que se reconhecer que no sistema de precedentes restou tolhida na mesma potência a possibilidade de definição do que vem a ser direito provável para fins de concessão da tutela provisória.

Não faz o menor sentido retirar do magistrado a competência para análise de mérito da ação, impedir o exercício da jurisdição com ordem de sobrestamento, a fim de dar unicidade e eficiência ao sistema, e manter individualizada a verificação da presença da probabilidade do direito no caso concreto.

Se a pretensão do código (quiçá constitucional) é assegurar que a prestação jurisdicional seja uniforme, e o mérito da ação assume relevância tal que justifica a afetação da questão, ainda que em outro processo, para julgamento transubjetivo vinculante, bem como o sobrestamento, a saída é reconhecer que no sistema de precedentes o direito provável, como requisito da tutela provisória, é presumido absolutamente. Presume-se-o porque motivada a instalação de especial rito de julgamento e efeito.

Assim, para que se mantenha a integridade e efetividade do sistema de precedentes no peculiar cenário do direito tributário em conflito é imprescindível ressignificar os requisitos da tutela provisória e compatibilizá-los.

 


[1] A expressão Lei está sendo utilizada em sentido lato par alcançar todo tipo de ato inaugural do ordenamento jurídico, produzido pelo Poder Legislativo ou Executivo.

[2] A palavra questão aqui está sento utilizada no sentido de controvérsia a respeito do dispositivo de lei cujo sentido será construído pelo Poder Judiciário ao interpretá-la.

[3] Ante o pilar eficiência, o mecanismo de produção de precedentes vem sendo também reconhecido como técnica de gestão do acervo de processos.

[4] Art. 982. Admitido o incidente, o relator:

I – suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso;

[5] Art. 1.035. (…)

§5º Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional.

[6] Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.

§1º O presidente ou o vice-presidente de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal selecionará 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça para fins de afetação, determinando a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso.

[7] Art. 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036 , proferirá decisão de afetação, na qual:

II – determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional;

[8] Art. 313. Suspende-se o processo:

V – quando a sentença de mérito:

a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente;

VIII – nos demais casos que este Código regula.

[9] Remetemos a leitora e o leitor para artigo de nossa autoria publicado nesta coluna que trata com mais detalhes a questão da prejudicial externa de objeto:

https://www.conjur.com.br/2022-set-04/processo-tributario-prejudicial-externa-suspensao-tematica-processos-tributarios/

[10] In Reflexões sobre as competências e o funcionamento do Supremo Tribunal Federal – Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/palestra-ivnl-reflexoes-stf-25ago2014.pdf – acesso em 02/12/2024, 20:32.

[11] Consta em notícia no site do Superior Tribunal de Justiça que, no podcast “Rádio Decidendi”, o mesmo Ministro Barroso afirmou que “desde a implantação do sistema no STF, foram julgadas 1.306 questões em regime de repercussão geral”, mas “ainda há 139 questões pendentes de julgamento”. O que só confirma a externalidade gerada pelo próprio mecanismos de solução da questão da eficiência na prestação da tutela jurisdicional. – https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/23082024-Podcast-Radio-Decidendi-Luis-Roberto-Barroso-fala-sobre-sistema-de-precedentes-e-repercussao-geral.aspx – acesso em 02/12/2024, 20:39.

[12] Toca o mérito, mas com ele não se confunde, uma vez que o direito provável é avaliado em estado de precariedade e, na maioria das vezes, ainda sem oportunidade do contraditório.



Fonte

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *