O que aconteceu com a regulação dos vídeos sob demanda?

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Há mais de seis anos havia uma forte reivindicação clamando pela regulação urgente e imediata do video on demand (VoD), pois o que se alegava era um enorme atraso por parte da agência reguladora para promover o adequado tratamento do tema. Veja-se que ainda naquele ano de 2018, a receita de serviços de streaming transmitidos pelo sistema over the top (OTT) ultrapassava US$ 56,17 bilhões, o que já apontava o crescimento vertiginoso desse modelo de negócio, algo que veio a se concretizar em 2024, com receita mundial batendo a casa dos US$ 182,40 bilhões [1], demonstrando que, passados seis anos, os números mais que triplicaram.

Nesse sentido alguns aspectos precisam ser devidamente explanados para que o leitor possa compreender o panorama da regulação do vídeo por demanda e ter uma leitura mais assertiva em consonância com a conjuntura dos fatos no seu devido tempo.

Mas antes de iniciar com as explanações, vale dizer que este artigo não visa discutir as motivações políticas ou ideológicas pelas quais se pleiteava efusivamente a atuação estatal efetiva naquele momento em especial, inclusive por parte dos próprios servidores da agência reguladora. O objetivo é simplesmente expor os acontecimentos de modo a demonstrar as razões pelas quais há de se constatar que a situação atual é muito mais preocupante.

Inicialmente, cumpre rememorarmos que, entre os anos de 2017 e 2018, estava em curso uma proposta para alterar a MP 2.228/2001, especificamente os dispositivos que tratam da tributação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) para fazer a inclusão da então denominada “Condecine VoD” que estava sendo discutida tanto pelos atores do mercado como pelas instituições governamentais no âmbito do Conselho Superior de Cinema [2].

Naquela época, pairava uma situação de grave insegurança jurídica sobre o mercado regulado, porquanto se questionava a legalidade e a constitucionalidade das instruções normativas da agência, que instituíam tributo por meio de ato normativo infralegal [3].

Cobrança de tributo pela Ancine

Em 2012, a Ancine decidiu inserir a cobrança de tributo por mecanismo infralegal mediante a realização de alterações nas instruções normativas 95, 104 e 105, introduzindo o segmento de mercado de vídeo por demanda na rubrica “outros mercados” dentro do espectro de incidência da Condecine Título.

Acontece que o fato gerador da Condecine Título não está previsto somente no artigo 32 da MP 2.228-1/2001. Ele é complementado pelo artigo 33. Como é cediço, a regra matriz da norma jurídica tributária nos dizeres do professor Paulo de Barros Carvalho é composta pelos critérios do antecedente e consequente. De modo que o antecedente da norma jurídica tributária formada pelos elementos: pessoal, material, temporal e espacial [4].

Portanto, quando o legislador elenca no artigo 32 da MP 2.228-1/2001 o rol de verbos (ações) praticadas pelos contribuintes para uma determinada conduta passível de tributação seguida da enumeração dos segmentos de mercado aposta no artigo 33 da MP 2.228-1/2001, significa dizer que o artigo 32 contém o “verbo” e o artigo 33 o seu devido complemento. Ambos, compõem assim o elemento material do antecedente da norma jurídica tributária.

Dessa maneira, o fato gerador tributário sujeita-se, nos dizeres do professor Luís Cesar Souza de Queiroz, ao princípio da legalidade materialmente qualificada [5]. De modo que a instituição de tributos pela introdução de novo fato gerador jurídico tributário deve ser realizado mediante lei formal, em respeito aos preceitos constitucionais dos artigos 149, § 4º e 150, I da Constituição e jamais por mera instrução normativa.

É bem verdade que existem outras razões pelas quais essa infração regulatória perpetrada por esses atos normativos infralegais é eivada de inconstitucionalidade, mas estes já foram objeto de diversos artigos científicos, bem como do meu livro Condecine e Poder Regulamentar. Portanto, não vale aprofundar essas questões já demonstradas e discutidas.

Conselho Superior de Cinema

No ano de 2019 foi apresentado um detalhamento durante a Reunião de Diretoria Colegiada nº 732, pela Superintendência de Registro da Ancine (SRE) acerca da quantidade de Certificados de Produtos Brasileiros (CPBs) e Certificados de Registro de Títulos (CRTs) emitidos no período de 2012 a 2019, evidencia-se o comportamento dos agentes regulados desde antes da criação da modalidade de tributação infralegal, até o momento em que se iniciaram as discussões sobre a Condecine VOD no âmbito do Conselho Superior de Cinema.

Dessa maneira, constatou-se que a rubrica do segmento denominado “outros mercados” sofreu um aumento significativo de 143% na arrecadação no final de 2015. Porém, a partir de 2017, quando começaram os debates no âmbito do Conselho Superior de Cinema, fica aparente o seu declínio acentuado, o que demonstra o retrato da insegurança jurídica [6].

Assim, após a aprovação de uma nova matriz para a tributação da Condecine no âmbito do vídeo por demanda ainda no ano de 2018 com as suas diretrizes e premissas, foram iniciadas as tratativas para a elaboração do texto legal e a agência reguladora acompanhava o desenrolar desse procedimento para se posicionar.

Nada mais natural do que aguardar um desenlace legislativo advindo do próprio Congresso Nacional ou até mesmo pela via de uma Medida Provisória para solucionar o imbróglio, dar segurança jurídica aos agentes de mercado e permitir o desempenho seguro da atividade regulatória e fiscalizatória por parte da Ancine.

Mudança de governo e outras prioridades

Porém, com a mudança de governo em 2019, a Presidência da República passa a ter outras prioridades. E essa matriz previamente discutida e trabalhada no âmbito do Conselho Superior de Cinema e dos agentes de mercado não segue o seu curso para aprovação.

Em vista disso, é de se constatar que, após o final do primeiro ano desse novo governo, em 2020, já era plenamente possível enxergar de modo mais claro que a regra matriz previamente trabalhada e discutida com os setores regulados não teria maiores avanços.

Nesse sentido, era imperioso construir uma nova solução para o passivo tributário que ia aumentando gradativamente com a inércia do órgão regulador. O que não foi feito!

Consequentemente, acumularam-se passivos tributários, e a situação de grave insegurança jurídica permaneceu até que em 15 de junho de 2021, com o advento da Lei nº 14.173, é inserido na MP 2.228-1/2001 o artigo 33-A com os seguintes dizeres: “Para efeito de interpretação da alínea e do inciso I do caput do art. 33 desta Medida Provisória, a oferta de vídeo por demanda, independentemente da tecnologia utilizada, a partir da vigência da contribuição de que trata o inciso I do caput do art. 32 desta Medida Provisória, não se inclui na definição de ‘outros mercados’”.

Longe de solucionar a questão, a alteração legislativa inaugurou novos problemas, senão vejamos: em primeiro lugar o texto legislativo inicia com “para efeito de interpretação”, indicando que se trata de uma “lei interpretativa”. Mas ocorre que a lei interpretativa carrega consigo um verdadeiro paradoxo, pois caso essa dita “lei interpretativa” diga respeito a entendimentos anteriores já asseverados, ela nada informa (não é o caso). Por outro lado, caso constitua, efetivamente, um novo entendimento sobre a questão, ela deve ser considerada autêntica “lei nova”, devendo, portanto, respeitar os preceitos constitucionais irretroatividade e da anterioridade, consoante artigo 150, III da CRFB/1988 (parece ser o caso).

Dessa maneira, quando o legislador aduz que a interpretação de vídeo por demanda não se inclui na definição de “outros mercados” é fundamental que seja unificado um entendimento a respeito dos recolhimentos anteriores ao advento da lei nova, haja vista que os fatos geradores ocorridos antes de 15 de junho de 2021 podem ser passíveis de cobrança ou de repetição de indébito tributário, a depender da solução que seja construída. Em outras palavras, essas soluções diametralmente opostas são ainda mais ensejadoras de insegurança jurídica.

Mudança na lei não contemplou outros segmentos

De conseguinte, é de se notar que a alteração legislativa cuida tão somente do vídeo por demanda, mas ignora solenemente os demais supostos “segmentos de mercado” que haviam sido incluídos nesse “cabide” dos “outros mercados”, aposto no artigo 33, I, ‘e’ da MP 2.228-1/2001. Basta observar o § 1º do artigo 21 da IN 105 da Ancine ao dispor que “entende-se por Outros Mercados os seguintes segmentos: I. Vídeo por demanda; II. Audiovisual em transporte coletivo; e III. Audiovisual em circuito restrito”. Ora se o legislador exclui o vídeo por demanda, o que acontece com esses demais segmentos de mercado, se é que podem ser classificados como tal?

Esse fato denota uma violação frontal à isonomia, pois não aponta soluções jurídicas para modelos de negócios (ou segmentos de mercado) que se encontram em similar situação de insegurança jurídica. Perceba-se que o vídeo por demanda ocupa verdadeiro lugar de destaque, mas nem por isso os demais modelos de negócio devem ser completamente ignorados.

Além de todas essas questões relacionadas, vem agora a cereja do bolo. Lembremo-nos que inserida nas espécies de Condecine também se encontra a Condecine Remessa, que é uma modalidade de Cide a qual incidirá sobre o pagamento, o crédito, o emprego, a remessa ou a entrega, aos produtores, distribuidores ou intermediários no exterior, de importâncias relativas a rendimento decorrente da ou exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo. Consoante o disposto no §2º do artigo 33 da MP 2.228-1/01, a Condecine será determinada mediante a aplicação de alíquota de onze por cento sobre as importâncias ali referidas.

Assim, quando o legislador trata, no parágrafo único do artigo 32 da MP 2.228-1/01, acerca da incidência do tributo sobre o “rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo”, ele não faz uma diferenciação a respeito do mecanismo tecnológico que deverá utilizar para realizar o fato imponível tributário que está positivado de maneira genérica e abstrata no enunciado prescritivo. De modo que se torna, pelo menos em tese, juridicamente possível a incidência tributária na hipótese do video on demand, ainda que essa tecnologia não tenha sido vislumbrada em 2001 com o advento da MP 2.228-1/01.

Portanto, o agente econômico que pratica, no mundo concreto, um destes verbos previstos no parágrafo único do artigo 32 da MP 2.228-1/01, consuma o fato imponível tributário descrito no artigo 32 da MP 2.228-1/01. Logo, deverá recolher, a título de Condecine, a alíquota de 11% sobre as importâncias que forem objeto da remessa ao exterior. Isto é feito de modo que os conteúdos que derem ensejo a “rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo” são passíveis de serem tributados pela Condecine Remessa.

Condecine Título por mecanismo infralegal

Diante disso, pergunta-se: por que instituir a Condecine Título por mecanismo infralegal e, ao mesmo tempo, negligenciar a incidência tributária da Condecine Remessa? A resposta é: “não se sabe”.

Mas antes tarde do que nunca…

Após longos anos de inércia do órgão regulador e sem qualquer outra perspectiva legislativa iminente como havia em 2018/2019, de acordo com matéria publicada pelo Tela Viva em 11 de dezembro de 2024 [7], em nota técnica, o diretor da Ancine  argumenta que a cobrança da Condecine-Remessa para serviços de streaming já está prevista na legislação atual, desde que haja remessa de lucros ao exterior. Ele destaca que a Medida Provisória 2.228-1/2001, que instituiu a Condecine-Remessa, não limita a cobrança a um ambiente tecnológico específico.

Essa é a posição que defendemos longamente no livro “Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória”[8].

Porém novas dúvidas surgem a respeito deste gigantesco passivo tributário que se acumula progressivamente e agora parece ter sido reconhecido pelo próprio órgão público. Esse passivo tributário está sendo fiscalizado? Ele será cobrado? Quem responde por essa inércia?

Contudo, o que mais impressiona em todo esse cenário é a ausência do senso de urgência que predominava há cerca de seis anos.

É notório que a situação evidencia uma prática regulatória que se distancia dos preceitos constitucionais e tributários, acumulando passivos significativos sem que haja uma fiscalização ou cobrança efetiva. Tal fenômeno nos remete ao clássico A Revolução dos Bichos, de George Orwell, em que os animais, inicialmente movidos por um forte senso de justiça, acabam progressivamente aceitando a opressão de uma das espécies que assume o poder e que manipulam as leis de forma a legitimar seu domínio. Sem olvidar a famosa frase de Orwell aposta na regra nº 7 que dizia que “todos os animais são iguais” e posteriormente é alterada para: “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros”.

 


[1] STATISTA. Video on Demand Worldwide. Chicago. 2020. Disponível em: <https://www.statista.com/outlook/dmo/digital-media/video-on-demand/worldwide>. Acesso em 03 de janeiro de 2025.

[2] Para fins de contextualização acerca da discussão do tema, entre os meses de novembro de 2017 e junho de 2018, os representantes dos segmentos de produção, distribuição, programação e difusão multiplataforma de conteúdos audiovisuais, bem como os operadores das redes de infraestrutura de telecomunicações, sob mediação dos representantes da Agência Nacional do Cinema – ANCINE e do Ministério da Cultura – MinC, fizeram diversas reuniões buscando um consenso sobre o modelo de tributação que constituiu uma matriz consolidada, a qual foi submetida aos membros do Conselho Superior do Cinema – CSC e foi aprovada por unanimidade no dia 05 de junho de 2018.

O documento final aprovado pelo Conselho Superior do Cinema foi elaborado em reunião realizada no dia 30 de maio de 2018, na ANCINE, por um grupo de trabalho composto por juristas do setor e coordenado por representantes da Agência Nacional do Cinema e do antigo Ministério da Cultura. Dessa matriz, resultou uma proposição legislativa que tramita nas casas legislativas.

[3] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 130.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 430.

[5] QUEIROZ, Luís Cesar Souza de. Interpretação e Aplicação tributárias. contribuições da hermenêutica e de teorias da argumentação. 1ª Edição, Rio de Janeiro: GZ. 2021. p. 255.

[6] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 131.

[7] LAUTERJUNG, Fernando. Para diretor da Ancine Condecine Remessa sobre serviços de streaming já está previsto na legislação atual. Tela Viva. Matéria publicada em 11 de dezembro de 2024. Acesso em 04 jan.2025.

[8] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.



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